[...] "Sempre impliquei com o sic.*
É bem provável que na raiz dessa antipatia esteja a ignorância que me levou, menino, não sei se por autossuficiência ou mero espírito lúdico, a tentar adivinhar o que significava aquela palavrinha enigmática, em vez de recorrer a alguma autoridade familiar ou escolar.
É bem provável que na raiz dessa antipatia esteja a ignorância que me levou, menino, não sei se por autossuficiência ou mero espírito lúdico, a tentar adivinhar o que significava aquela palavrinha enigmática, em vez de recorrer a alguma autoridade familiar ou escolar.
De repente, sem mais nem menos, lá vinha o sic, quase sempre grafado naquelas letras inclinadas que só muitos anos mais tarde eu aprenderia a identificar com a ideia de grifo ou itálico.
Mas não ainda, não já: tudo era nebuloso,
não fosse aquele um tempo em que já não se ensinava latim na escola,
mas ainda se abusava de citações e outros cacoetes latinos nos textos de jornal.
No entanto, se a tarefa era dura, não me faltava perseverança.
Saquei logo que o sic tinha a ver com alguma sacanagem, alguma ironia ou gozação, porque só aparecia quando o autor do texto citava outra pessoa.
Fui constatando – ou mais intuindo que constatando –
que o sic vinha sempre depois de um erro,
um escorregão de ortografia ou gramática que,
por meio dele, ficava denunciado.
O sic, concluí, era uma risada, uma risada curta.
Um deboche.
Um dedo-duro e, ao mesmo tempo, um lava-mãos do autor.
Tudo aquilo que de fato ele é.
Como se vê, eu tinha partido da mais completa ignorância para decifrar o sic de cabo a rabo, dos pés à cabeça, meu único e embaraçoso erro sendo o de, talvez por influência do cartunesco hic, imaginar que sicera a representação de um soluço sarcástico.
Seja lá o que isso for.
Mais tarde, claro, aprendi que ele é um advérbio latino.
Que significa simplesmente “assim, deste modo”.
Que por tradição é usado quando, numa citação, há a necessidade de frisar que se trata de transcrição literal, daí soar meio estranha ou ser francamente errada mesmo.
Quer dizer, sicficou sério, antipático, foi perdendo a graça." [...]
Sérgio Rodrigues
(1962 - )
ficcionista, crítico literário, jornalista e romancista mineiro
*trecho do livro What Língua is esta? (2005)
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